Uma onda de cancelamentos de planos de saúde que vem atingindo autistas, idosos com câncer, cardiopatas e gestantes gerou processos no governo e uma enxurrada de ações na Justiça.
O UOL apurou que mais de 290 mil planos foram cancelados por decisão das operadoras — as chamadas rescisões unilaterais — nos últimos dois anos. É o que mostram dados de um levantamento do Ministério da Justiça feito com apenas sete operadoras.
O total de cancelamentos unilaterais, no entanto, é maior, mas permanece desconhecido — empresas e a própria Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) não informaram um número exato à reportagem e ao Ministério da Justiça.
Defensorias Públicas de diferentes estados apontam que, por trás dessas rescisões, há esquemas de “falsos planos coletivos” e indicativos de “seleção de risco” — a prática ilegal cancela planos de adesão coletiva para excluir pacientes com tratamentos de alto custo, enquanto os demais são realocados.
O Ministério da Justiça abriu, na semana passada, processo administrativo contra 17 operadoras por suspeitas de “práticas abusivas” contra o Código de Defesa do Consumidor. As sanções podem ir de multas de até R$ 14 milhões a intervenções administrativas.
“Sinto uma tristeza muito grande. Até pagando a gente não tem os nossos direitos. Quando fiz o plano, eu era uma pessoa saudável”, disse Maria Conceição Silva Vieira, 70, que usa uma bolsa de colostomia desde que teve câncer na uretra em 2022.
A professora obteve na Justiça o direito de retomar o plano, mas o serviço só foi restabelecido quatro meses depois, após o UOL questionar a operadora Amil.
A reportagem apurou que ao menos 2.500 pessoas conseguiram reaver seus planos judicialmente, mas ainda há quem siga lutando na Justiça para recuperá-los.
Comprada em dezembro de 2023 por R$ 11 bilhões pelo empresário José Seripieri Filho, a Amil lidera neste ano o ranking de queixas por cancelamentos da ANS. Só de rescisões unilaterais em planos de adesão coletiva foram 28 mil até maio.
“Os contratos foram cancelados coletivamente, sem qualquer distinção de pessoa, porque apresentavam desequilíbrio financeiro a ponto de os reajustes necessários para corrigi-los serem inexequíveis”, afirmou a Amil, que nega ter feito seleção de risco.
Apesar de ter reduzido em um terço sua carteira desse tipo de plano, a Amil continua vendendo a modalidade. Entre as corretoras que o oferecem, está a do filho do dono.
Luca Seripieri ofereceu recentemente planos de adesão coletiva a grandes sindicatos de servidores públicos em Brasília. A empresa dele diz agir dentro da legalidade.
“Falsos planos coletivos”
Duas ações civis públicas da Defensoria Pública do Distrito Federal querem indenizações de R$ 1 milhão da Amil e da Unimed por danos morais.
As ações sustentam que as operadoras e administradoras de saúde usaram entidades de fachada, como associações genéricas de estudantes ou aposentados, para inserir pacientes em planos por adesão coletiva — passíveis de cancelamentos unilaterais.
Para demonstrar o esquema, a Defensoria aponta casos de beneficiários da Amil:
- cujas datas de filiação à associação e de assinatura do contrato são as mesmas;
- que não guardam qualquer relação com essas associações;
- que passaram a pagar taxa associativa mensal no próprio boleto do plano de saúde
Um dos contratos cancelados é o de uma criança com Síndrome de Down que, apesar de ter 11 anos, foi filiada à União Brasileira dos Estudantes Secundaristas do DF.
Parte dos pacientes excluídos são migrados para outros planos por portabilidade, observa Antônio Carlos Cintra, defensor público do DF.
A Defensoria registra na ação que o fato de apenas pessoas com condições de saúde especiais buscarem a Justiça é um indicativo de que as demais — também excluídas, mas saudáveis — foram realocadas em novos contratos. O processo não apresenta, contudo, provas desse tipo de prática.
A administradora Qualicorp — processada com a Amil na mesma ação — foi uma das pioneiras nas vendas de planos por adesão coletiva. Ela foi fundada por Seripieri Filho. O empresário deixou a Qualicorp e, no final de 2023, comprou a Amil. A Qualicorp diz seguir a legislação.
O esquema de “falsos planos coletivos” também é observado em outras partes do país.
“As empresas querem vender. Quando o plano dá trabalho, daqui a um ano, eles acham uma forma de expulsar o cliente”, diz Norma Negrão, do Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública de Alagoas. “São entidades forjadas. É fraude”, corrobora o defensor Marco Paulo Denucci, do Núcleo do Consumidor em MG.
As operadoras negam. A Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) diz que “de forma alguma houve seleção de risco, prática proibida pela agência reguladora”.
A ANS permite rescisões à revelia do paciente em planos coletivos por adesão, salvo se o paciente estiver internado em hospital ou o tratamento for considerado fundamental à sobrevivência. Mas isso não vem sendo respeitado.
“Foi submetido a três cirurgias cardiológicas. Necessita de consultas com cardiologista pediátrico e exames com regularidade. A urgência é fato notório”, escreveu a juíza Paloma Barbosa, da 3ª Vara Cível de Águas Claras (DF), ao restabelecer o plano de uma criança de 7 anos.
“Eu fiquei abaladíssima [com a rescisão do plano, em maio], porque não tenho condição de pagar um tratamento desse nível”, diz Francisca Cleto Braga, mãe de dois adolescentes autistas no Gama (DF). A família recuperou o plano na Justiça, mas reclama que agora a Amil ficou mais exigente para autorizar tratamentos e consultas.
A ANS também condiciona cancelamentos unilaterais à migração para outros planos sem carência. No entanto, o custo pode superar o dobro da mensalidade cancelada.
“Os planos que eu tenho tentado pedem para [a adesão] ser em CNPJ [empresa], mas ficaria muito alta a mensalidade. Eu teria que pagar a minha, a do meu filho… Dá mais de R$ 5.000 por mês. Estou desprotegida”, diz Célia Bertotti, 77, que teve o plano cancelado pela Amil após um câncer de mama contra o qual faz acompanhamento.
A Amil afirmou que, “em relação aos beneficiários elencados pela reportagem, todos estão com seus planos de saúde ativos”. Isso ocorreu após decisão judicial.
As operadoras Notredame, Sulamérica e Bradesco negaram fazer rescisões unilaterais em planos por adesão. Já a Notredame e a Unimed Nacional disseram não adotar cancelamentos discriminatórios. A Unimed Rio disse ter compromisso com normas para rescindir contratos.
A ANS afirmou não ter dados sobre os cancelamentos unilaterais e que resolve “cerca de 90% das queixas registradas em seus canais”.
Fonte: UOL